quarta-feira, 12 de maio de 2010

" O alimento é complexo, assim como a vida"


Slow Food e os princípios da Ecogastronomia

por Kelly de Souza em 08 de Maio de 2010
Fonte: http://cultura.updateordie.com/gastronomia/2010/05/08/slow-food-e-os-principios-da-ecogastronomia/

O avanço da indústria no século XX, após a 2ª Guerra Mundial, permitiu progressos inestimáveis à Economia, o que possibilitou o aumento da produtividade e do consumo. Se esse processo gerou inquestionável desenvolvimento socioecônomico, criou também efeitos colaterais antes desconhecidos pela sociedade. A industrialização da alimentação, apesar de ampliar a variedade e reduzir a desnutrição em várias partes do mundo, gerou igualmente uma produção descontrolada, incrementando a difusão da obesidade, entre outras doenças, e maus comportamentos. O motivo? Industrializamos alimentos demais, em geral sem qualidade. O fast-food é um exemplo perturbador desse processo.

Para o jornalista italiano Carlo Petrini, fundador e presidente do movimento voltado à ecogastronomia, iniciado na década de 80, os processos de industrialização dos alimentos os reduziram à mera commodity. Petrini, que participou da oitava edição do Entre Estantes e Panelas – A gastronomia de pensar, na Livraria Cultura, onde também lançou Slow Food - Princípios da nova gastronomia, defende a fórmula: bom (qualidade), limpo (sustentabilidade) e justo (distribuição social).

Na Revista da Cultura deste mês, Carlo Petrini explicou os princípios da nova gastronomia, além de citar livros fundamentais para entender o Slow Food (veja as indicações aqui). Acompanhe abaixo a entrevista completa.

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Boa parte da população do primeiro mundo sofre de obesidade, ou excesso de peso, sendo este um fenômeno crescente. Existem inúmeras explicações para essa epidemia, algumas científicas, outras sociológicas e até políticas. Em sua opinião, porque as pessoas comem cada vez mais e pior? Posso dizer que um dos principais efeitos colaterais da indústria alimentícia foi justamente a difusão exponencial da obesidade, uma verdadeira epidemia hoje em dia. A industrialização se prestou a produzir alimentos, a liquidar com a fome e a desnutrição em várias partes do mundo, imediatamente após a Segunda Guerra e nos anos sucessivos, mas, somente o mundo rico obteve essa conquista. A consequência é que hoje produzimos alimentos em demasia – segundo a FAO o suficiente para suprir uma população mundial de 12 bilhões de pessoas, quando somos apenas 7 bilhões – mas essa comida ou é mal distribuída, ou consumida de forma exagerada.

Paralelamente a este desequilíbrio, que invoca vingança no abundante bilhão de pessoas no planeta que sofre de fome e desnutrição, tem também o fato de que os processos de industrialização da produção de alimentos perderam completamente de vista a qualidade do produto, reduzido a mera commodity, sem que se considere o valor organoléptico (que sensibiliza os sentidos e age em nossos corpos), nutritivos e também culturais. Dessa maneira, o alimento torna-se insustentável para o equilíbrio ambiental da Terra, e também para a dieta dos ocidentais, que abusam dele, que o consomem sem conhecê-lo verdadeiramente e que sofrem por decisões alheias, aquelas da indústria, que produz para o lucro e não para o bem estar das pessoas. O alimento e a agricultura industrial são um paradoxo em termos, porque a comida, até certos níveis, não pode ser considerada como uma outra mercadoria, é a energia da vida que colocamos em nosso corpo. Se falsificamos a comida, falsificamos a nós mesmos e as primeiras consequências são vistas em nosso corpo.

Em seu livro “Slow Food, Princípios da Nova Gastronomia”, o senhor questiona os modelos atuais e busca resgatar as formas mais primitivas de viver e se alimentar. Como incorporar a indústria da alimentação nessa luta? Não pressuponho que o alimento industrial seja de todo mal, digo somente que quando se perde o senso da medida, se perde o senso de tudo. O alimento agrega processos muito mais complexos na linha de produção industrial: tem a ver com a identidade dos povos, com a agricultura e seu forte impacto no ambiente, com o comércio, que pode ser instrumento de poder e injusto. Não desafio ninguém: digo somente que nos métodos de produção tradicionais tem tanta sabedoria, tantas soluções para problemas atuais, e que foi um erro tremendo pensar em abandoná-los em favor de uma modernidade que nos conduziu para onde todos sabemos. Não proponho um retorno ao passado, mas falo de aprendermos com o passado para tornarmos a produção de alimentos mais sustentável, em todos os níveis. É algo que a indústria pode fazer, os artesãos, os camponeses e não implica em renúncias, mas, ao contrário, tem a ver com prazer, com o prazer de comer e também com o prazer de viver. É preciso senso de medida e bom senso, não é necessário exagerar em nenhuma direção, nem com o impulso da industrialização, nem com a (re)proposição de métodos e estilos que de fato são arcaicos e que simplesmente não se encaixam mais no mundo de hoje.

Essa é uma batalha solitária e individual, que cada pessoa deve ter (ou grupos, como Slow Food) ou é possível regras e leis que apóiem esse resgate à boa alimentação? Acho que é antes de tudo uma batalha dos indivíduos, daqueles que compartilham as mesmas idéias e se reúnem em associações, grupos ou movimentos. Falo isso porque neste momento confio pouco na política em relação a estes temas, que é ainda muito influenciada pelos lobbies e por quem move grandes capitais, ou ainda se distrai com outros temas que erroneamente considera mais importantes. Os políticos em breve se darão conta que a insustentabilidade dos processos de produção de alimentos é cara também do ponto de vista econômico e está colocando em risco todas nossas reservas. Mas para evitar que seja tarde demais quando decidirem intervir, é melhor que camponeses e cidadãos coloquem em funcionamento processos virtuosos, e repito: não é algo que dê trabalho ou implique em renúncias, é uma questão de descobrir qual o verdadeiro valor do alimento (e não seu preço), sua importância, e lhes garanto que esta é uma atividade prazerosa e não de elite, porque o prazer da comida é fisiológico, todos podem e devem ter direito de experimentá-lo. Desafio qualquer um a dizer-me que uma boa feijoada seja um prato de ricos: uma boa feijoada pode dar muito prazer em quem a come, e se consigo achar ingredientes locais será ainda melhor, tanto para mim que a como, quanto para o ambiente e os camponeses que manipularam as matérias-primas.

Como surgiu a idéia do movimento Slow Food? O que o inspirou? A inspiração nasceu ao dar-se conta do deserto que se manifestava nos anos 80 em relação ao alimento graças à exasperação do modelo industrial. O fast food é o exemplo disso, o protótipo, então denominar-se slow food era uma provocação mais que tudo emblemática. Criar um movimento sobre estas bases não foi muito difícil, porque, quando falamos de bem estar, de memória, de identidade, de cultura material, de biodiversidade, de lugares que amamos e nos quais vivemos, do alimento verdadeiro, é difícil permanecer totalmente indiferente. Não somos um movimento contra alguma coisa, somos a favor do alimento intenso do sentido verdadeiro da palavra, em tudo aquilo a que se refere e fazer com que possa chegar a nossa mesa pra nos trazer alegria.

Como viabilizar a aproximação entre “o campo e a mesa” nos centros urbanos, se cada vez temos menos campos e menos mesas? Estamos diante de uma utopia circunstancial e passageira (que só pode ser vencida com a educação infantil) ou podemos ter esperança de transformações inesperadas (geradas por mudanças comportamentais)? É preciso voltar a conhecer a comida. Voltar a entender de onde provém o que comemos. Desse modo se começará a recusar uma certa comida falsa, insustentável, anônima e ruim. Certamente é necessário educação, mas depois todos se unem para recuperar os modos de relacionamento entre a cidade e o campo. Temos a agricultura urbana, a agricultura das periferias, em proximidade com os centros urbanos, temos os grupos de consumo e de formas de sustento para os camponeses que estão a poucos quilômetros de nós e que em troca estão dispostos a fornecer comida boa a nossas cidades. Temos os “farmer’s market”.

Não é uma utopia dizer que a cidade e o campo podem interagir profundamente. É possível concretizar esta ideia também sem extremismos, com realismo e sem pretender que toda comida em todos lugares seja de proveniência local. Mas o modelo no qual a comida viaja demais está em todas as partes. Me explique por que devo consumir tomates que chegam da China quando, ao lado de minha casa, logo nos limites da cidade, temos ótimos produtores que talvez sejam mal pagos pela indústria alimentar? Não seria melhor tentar construir uma relação mais direta para obter vantagens tanto para quem consome quanto para quem cultiva? Tenho esperanças, e se vocês olharem à sua volta, verão que estes novos modelos estão se difundindo também perto de suas casas. É preciso somente querer vê-los, aprender a procurar por eles, conscientizar-se de que a comida é importante e merece dedicação, não aptidão.

Pode nos citar um caso de sucesso dentro deste conceito e modelo sustentável? Basta citar os farmer’s market nos EUA, que em uma década passaram de poucas centenas a milhares, como um verdadeiro fenômeno que está se tornando de massa. Ou ainda a Community Supported Agriculture, que é um sistema pelo qual os cidadãos se reúnem e financiam a produção de uma empresa agrícola durante um ano, obtendo em troca os produtos assim que ficam maduros ou prontos, diretamente em casa. Tem também os Gruppi d’acquisito na Itália que funcionam quase da mesma forma. Com a internet é muito mais fácil organizar estas formas de produção e acreditem, funciona!

De um modo geral, o que podemos considerar como os princípios da nova gastronomia? Eu os agrupei em uma fórmula: bom, limpo e justo. Bom em relação às qualidades organolépticas do alimento, seu valor cultural e de identidade. Em resumo, o prazer, porque não vejo como é possível fazer o mal com um dos elementos mais indispensáveis à vida, que também é fonte de prazeres. Limpo no que diz respeito à sustentabilidade de todos os processos, do cultivo/criação, à transformação, à distribuição, ao próprio consumo. É importante porque a comida atualmente representa o setor majoritariamente insustentável dentre todas as atividades humanas, e está destinado a tornar-se cada vez mais, se não mudarem os sistemas que o governam. Finalmente justo: porque sejam os camponeses, que trabalham o alimento, seja o elo final da cadeia, ou seja, nós que comemos, devemos ter o direito a um preço justo para as duas partes, o direito de não sermos explorados nos campos ou termos nossas cabeças influenciadas pela publicidade. O problema da justiça social é monstruoso, porque demasiadas injustiças se perpetuam em nome da comida. A gastronomia como se entende é uma ciência complexa ao levar-se em conta todos esses fatores. É complexa e multidisciplinar, e não é uma ciência exata, por ser mediada com bom senso e senso de limite. Mas não se deve assustar com a complexidade: o alimento é complexo, assim como a vida.

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