domingo, 12 de setembro de 2010

Mudanças no perfil do estado nutricional do povo brasileiro

Morrer pela boca, a sina

Rodrigo Martins

Nação de famintos é coisa do passado. O Brasil agora disputa a liderança nos rankings de obesidade

Em 11 de maio, o colunista Ancelmo Gois, do jornal O Globo, sentiu-se na obrigação de defender as mulheres cariocas. Lembrou o episódio em que o correspondente Larry Rohter, do New York Times, as chamou de “gordinhas” e lamentou a repetição da descortesia recentemente, desta vez pelo diário francês Direct Matin Plus, que teria afirmado que “as mulheres de corpos esculturais sumiram das praias cariocas”, e a razão do fenômeno seria “a crescente obesidade e a falta de exercícios da população feminina local”. Talvez para agradar a seus leitores (e leitoras), Ancelmo partiu para o ataque: “Ou este jornal francês não frequenta as praias do Rio ou não entende de mulher”.

Não convém discutir as formas de quem vive pelas praias, mas é fato, garantem os especialistas, que a população brasileira, e não apenas a carioca, vive uma epidemia de obesidade. O Ministério da Saúde está prestes a divulgar dois grandes levantamentos sobre o tema. Um deles é o bloco temático de obesidade e hábitos alimentares do Vigitel 2009, uma pesquisa telefônica feita nas 26 capitais brasileiras mais o Distrito Federal para monitorar a frequência de fatores de risco à saúde da população. Os resultados do estudo devem ser apresentados nas próximas semanas. O outro levantamento, mais complexo, é o inquérito nacional de obesidade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apresentará, em agosto, os resultados de uma pesquisa realizada entre 2008 e 2009.
Os responsáveis pelos estudos não estão autorizados a antecipar dados antes da publicação oficial. Mas, a julgar pela tendência apontada nos levantamentos mais recentes e observada por quem estuda o assunto, o cenário não é promissor. Há, inclusive, quem aposte que o País pode, em uma década, chegar aos mesmos padrões de obesidade dos Estados Unidos, onde três quartos da população adulta têm excesso de peso e 25% são considerados gordos. “Basta analisar o assustador crescimento da obesidade em crianças e adolescentes para verificar que o Brasil realmente pode atingir esses patamares se nada for feito para reverter o processo”, alerta o médico endocrinologista Márcio Mancini, responsável pelo grupo de combate à obesidade do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Em 2003, no último inquérito nacional feito pelo IBGE, 41% dos homens e 39,2% das mulheres estavam com excesso de peso no Brasil. Além disso, 8,8% dos homens e 12,7% das mulheres eram obesos. Esses indicadores já são preocupantes. Mas seria possível, em tão pouco tempo, dobrar ou triplicar esses índices, a ponto de o Brasil atingir os patamares de obesidade americanos? “A hipótese não é alarmista, é real. Superamos as metas de combate à desnutrição e subnutrição, mas a população está engordando em ritmo acelerado”, afirma o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. “E os impactos já são sentidos no Sistema Único de Saúde (SUS), com o aumento dos custos para o tratamento de doenças crônicas associadas à obesidade, como hipertensão e diabetes.”
De acordo com o Ministério da Saúde, a proporção de brasileiros diagnosticados com hipertensão arterial cresceu de 21,5%, em 2006, para 24,4%, em 2009. Além disso, os técnicos da pasta identificaram uma tendência de aumento nas mortes por diabetes. Nos adultos de 20 a 74 anos, o risco de morte passou de 16,3 por 100 mil habitantes, em 1990, para 24 por 100 mil habitantes, em 2006. O custo para o tratamento dessas moléstias também não pára de crescer. “O Sistema Único de Saúde destina cerca de 600 milhões de reais apenas para as internações relativas à obesidade. Esse valor equivale a 12% do que o governo brasileiro despende anualmente com todas as outras doenças. Se forem levados em consideração ainda os gastos indiretos (faltas ao trabalho, licenças médicas e morte precoce), estima-se que esse valor seja mais que o dobro”, diz a médica Leila Araújo, professora da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso).

O Brasil está passando por um processo que os especialistas chamam de “transição nutricional”. Em 1974, 5,7% da população brasileira era considerada obesa e 8,6% era vítima da desnutrição. Mas, em 1989, o cenário inverteu-se. A obesidade atingia 9,6% da população, enquanto a desnutrição caiu para 4,2% (a Organização Mundial da Saúde considera como aceitável uma taxa de desnutrição inferior a 5%). “Isso aconteceu porque a população mais pobre teve mais acesso aos alimentos. Mas, nas políticas públicas, essa informação parece não ter sido bem assimilada. Ainda resiste a ideia de que o Brasil é um país de famintos quando, na realidade, está se tornando um país de obesos”, afirma Mancini, do Hospital das Clínicas. “É louvável que o governo federal tenha lançado o programa Fome Zero para erradicar a desnutrição. Mas é necessário lançar um programa com a mesma visibilidade e magnitude para combater a obesidade. Percebo uma intensificação das campanhas de combate à hipertensão e ao diabetes. Mas o principal fator de risco, a obesidade, não está sendo devidamente combatido pelo poder público.”

A avaliação é compartilhada pela professora Elisabetta Recine, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar da Universidade de Brasília (UnB). “As áreas de nutrição dos governos, tanto na esfera federal quanto na estadual e municipal, estão enfraquecidas e perdem recursos ano a ano”, afirma a especialista. “Há uma lógica que drena os recursos da saúde para a aquisição de tecnologia, equipamentos e fármacos. E as ações de prevenção e promoção da saúde ficam em segundo plano”.

Alguns números reforçam as críticas da nutricionista. A população brasileira consumiu, em 2009, quase 2 toneladas de sibutramina, um emagrecedor que atua como inibidor de apetite. Enquanto isso, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (Pnan) dispõe de um orçamento anual de 38 milhões de reais. “É muito pouco, se levar em consideração os elevados custos para o tratamento de doenças associadas à obesidade. Além da hipertensão e do diabetes, diversos tipos de cardiopatias e câncer estão relacionados à má alimentação”, emenda Elisabetta.
Mas a coordenadora da Pnan, Ana Beatriz Vasconcelos, garante que o investimento público em prevenção é bem maior do que aparenta. “O combate à obesidade, para funcionar, deve ser uma articulação de diversas políticas, como estímulo à pratica de esportes, educação alimentar, merendas mais saudáveis nas escolas. Quem é alvo das campanhas de combate à hipertensão e ao diabetes, também recebe orientação nutricional e participa de programas para combater a obesidade. Trata-se de uma abordagem multisetorial, que consome recursos de muitas áreas.”
A epidemia de obesidade não é uma exclusividade nacional. Além dos Estados Unidos, recordista mundial, a maioria dos países da Europa Ocidental sofre com o aumento do número de habitantes com excesso de peso, que hoje representa de 40% a 50% da população. “Na América Latina, o México tem uma prevalência bem maior que a nossa, até porque abraçou os padrões de consumo do vizinho Estados Unidos. Mas esse crescimento da obesidade se verifica em quase todos os países emergentes, à exceção dos asiáticos, como China e Índia, mais resistentes ao tipo de alimentação dos ocidentais”, afirma o endocrinologista Bruno Geloneze Neto, do Laboratório de Investigação em Metabolismo e Diabetes da Unicamp. “A verdade é que todos os países estão perdendo o combate à obesidade e, em grande medida, isso se deve ao fato de as políticas públicas jogarem toda a responsabilidade sobre o indivíduo, visto como desleixado e descuidado por engordar, sem levar em conta os fatores genéticos e sociais que contribuem.”
Para Geloneze, a obesidade precisa ser vista como uma doença crônica, neuroquímica e marcada por recaídas. Ou seja, não adianta o paciente buscar soluções imediatas, como a dieta da moda, e depois voltar aos hábitos antigos. A aposentada Nilda Tocacelli Campos, de 73 anos, conhece bem essa história. Até os vinte e poucos anos foi uma mulher magra, mas, depois de engordar, nunca voltou a ter o peso ideal. “Trabalhava num escritório de contabilidade sentada o dia todo. Sempre adorei comer massas e doces. Nem por isso imagine que eu não me preocupava. Fiz regime a vida inteira, mas sempre que dava uma escapulida, voltava a engordar”. Hoje, Nilda controla a pressão com medicamentos e precisa de assistência médica para emagrecer. Iniciou o tratamento há nove anos, quando precisou fazer uma cirurgia ortopédica e estava gorda demais para o procedimento. “Tenho 1,69 metro e peso 86 quilos, o que é muito. Mas cheguei a pesar 99 quilos. Acostumei-me ao fato de que preciso moderar a alimentação todo santo dia, sem descanso

Além de tratar a obesidade como doença crônica, o endocrinologista Geloneze destaca que a ciência precisa se esmerar para encontrar as razões que levam as pessoas a comerem compulsivamente. “Pesquisadores da Unicamp estão prestes a publicar um estudo que mostra que a gordura ingerida pelas pessoas mata os neurônios que controlam a sensação de saciedade”, afirma. “Também é preciso ter cautela ao diferenciar os pacientes. Temos um banco de dados que mostra que 20% dos pacientes obesos têm metabolismo magro. Isto é, eles não concentram substâncias nocivas como colesterol e triglicérides no sangue, são pessoas saudáveis, apesar de todo o preconceito.”
A médica Sandra Villares, responsável pelo Ambulatório de Obesidade Infantil do Hospital das Clínicas, lembra ainda que há fatores genéticos que levam muitas pessoas a engordar. “Na literatura médica, há estudos que indicam que a genética está associada a 70% dos casos de obesidade”, afirma. “Mas convém dizer que, mesmo se a pessoa tiver uma predisposição a engordar, se ela mantiver uma alimentação adequada e não for sedentária, não será obesa. Nossos genes não tiveram tempo para mudar da década de 70 para os dias de hoje. E, no entanto, a população não pára de engordar. Por quê? Come demais, alimenta-se de forma errada, não pratica exercícios, às vezes até porque não tem como. Quem deixa a criança brincar na rua com uma violência dessas? E as mulheres que trabalham? Elas não têm tempo para cozinhar, preparam o que for mais rápido, normalmente uma fritura qualquer ou uma comida congelada.”
Os especialistas são unânimes em dizer que o principal foco das políticas de prevenção devem ser as crianças e adolescentes. Não apenas pelo crescimento vertiginoso da obesidade entre eles, independentemente da classe social (gráfico à página 28), mas também porque é muito mais difícil mudar os hábitos da população adulta. A estudante Fernanda Melo de Silva, de 15 anos, precisou de assistência médica para combater a obesidade. Iniciou um tratamento no Hospital das Clínicas paulistano em 2005, mais abandonou no ano seguinte. Só voltaria em busca de assistência em junho de 2008, quando pesava 93 quilos. Hoje, com 79 quilos e 1,63 metro de altura, mantém uma dieta balanceada, caminha todos os dias por 40 minutos e faz, duas vezes por semana, aulas de dança. “Eu adorava comer uma caixa de bombons enquanto assistia a um filme na tevê. Também ia pelo menos umas três vezes na semana ao McDonald’s. Agora, só posso ir uma vez por mês”, afirma.
Desde que voltou à dieta permanente, Fernanda mudou os hábitos de muitas pessoas. As amigas da escola abandonaram a cantina da escola com seus salgadinhos fritos e refrigerantes e passaram, como ela, a comer uma fruta ou um iogurte no intervalo das aulas. A mãe também aderiu ao estilo de vida. “Eu sempre fiz dieta na minha vida, mas assim que parava, voltava a engordar. Não posso mais me arriscar. Controlo minha hipertensão com remédios e tenho histórico de diabetes na família”, explica.
Para evitar a multiplicação de casos como a de Fernanda, que precisou de tratamento médico para combater a obesidade, a Anvisa está prestes a publicar uma portaria para regulamentar a publicidade de alimentos. A ideia é que os anúncios de produtos industrializados ricos em gordura, sal e açúcar tragam mensagens semelhantes às usadas em embalagens de cigarro para alertar a população sobre os riscos do consumo excessivo daquelas substâncias. “Pelo projeto original, também havia a intenção de proibir a publicidade desses alimentos em horários dedicados a programas infantis, mas os procuradores da Advocacia-Geral da União deram um parecer contrário à decisão, porque ela pode gerar uma avalanche de processos movidos pela indústria alimentícia e pelas agências de publicidade”, explica Maria José Delgado, gerente de monitoramento e fiscalização de propaganda da Anvisa.
Mesmo assim, caberá à diretoria colegiada da agência a decisão final. “Apesar da ameaça de judicialização, o órgão pode entender ser necessário colocar essa regra em vigor”, diz Maria José. Também está em discussão a venda casada de alimentos e bebidas com brindes e brinquedos. “Entendemos que a criança é muito vulnerável à propaganda e é preciso protegê-la de um modelo de consumo que pode trazer graves riscos à sua saúde”, completa. A portaria deve ser publicada até o fim do ano.
Outra iniciativa do Ministério da Saúde é negociar com as indústrias alimentícias a redução gradativa dos índices de gordura, sal e açúcar dos alimentos processados. Um dos compromissos assumidos pelas empresas é a redução dos índices de gordura trans, de forma gradual e até o fim de 2010, conforme os parâmetros recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que define um limite máximo de 2%. De acordo com Edmundo Klotz, presidente da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), o setor já estava atento a essas demandas e, em dezembro de 2008, “apresentou um estudo, conduzido em parceria com as suas associadas, que apontava consideráveis reduções nos teores de açúcar (29%), sódio (20%), gordura saturada (45%) e gordura trans (86%) em cinco anos.”
Os pactos firmados com a indústria não seduzem, porém, todos os especialistas. “O mais preocupante é o estímulo ao consumo exagerado de alimentos. Recentemente, constatamos num grupo de pacientes a redução do consumo de gordura e colesterol. Mas eles continuavam engordando, porque comiam demais, especialmente produtos industrializados de alto teor calórico, como bolachas recheadas e refrigerantes”, diz a médica Rosely Sichieri, do Instituto de Medicina Social da Uerj. “Para ter uma ideia, um pacote de bolachas recheadas contém cerca de mil calorias, que é quase a metade do total recomendado para um adulto. Coibir a publicidade desse tipo de produto às crianças e estimular o consumo de alimentos saudáveis é indispensável.”


Segundo a especialista, o Brasil precisa garantir condições para que a população tenha uma vida menos sedentária e uma alimentação melhor. “Não adianta só dizer não coma isso, não coma aquilo. E a população não ter acesso a frutas, legumes e verduras, seja porque esses produtos não chegam, seja porque o preço é proibitivo”, afirma Sichieri. “Alguns países nórdicos, como a Suécia e a Noruega, tiveram excelentes resultados ao subsidiar os alimentos saudáveis e impor taxas aos produtos industrializados de alto teor calórico e baixo teor nutritivo. Além de estimular, de fato, as pessoas a praticarem exercícios físicos, como pedalar até o trabalho. E olhe que faz um frio danado lá.”
O ministro Temporão garante que as ações de educação alimentar, em maior ou menor escala, estão sendo feitas nas escolas, unidades básicas de saúde e com os profissionais do programa Saúde da Família, que atende cerca de 90 milhões de brasileiros. Quanto aos subsídios para as comidas saudáveis e a taxação dos chamados alimentos porcarias, ou junk food, mostra-se reticente. “Ainda não entramos nessa discussão no ministério, mas é preciso ter cautela ao regular a publicidade ou impor sanções à indústria alimentícia”, afirma o ministro da Saúde. “Os alimentos estão numa situação bem diferente do cigarro. O tabaco traz danos à saúde em qualquer nível de consumo. No caso dos alimentos, só trarão danos se consumidos em excesso.”

Rodrigo Martins é repórter da revista CartaCapital há quatro anos. Trabalhou como editor assistente do portal UOL e já escreveu para as revistas Foco Economia e Negócios, Sustenta!,Ensino Superior e Revista da Cultura, entre outras publicações. Em 2008 foi um dos vencedores do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.


Fonte: http://www.cartacapital.com.br/saude/morrer-pela-boca-a-sina

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